O Rei Leão e a tragédia dos comuns

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Esta semana fui ver o filme Rei Leão com meus filhos. O filme é mais sombrio que o desenho, já aviso. Mas o que é interessante nessa história é  a lição de governo. Tudo era colorido e alegre no reinado do rei Mufasa. Tudo ficou cinza e triste no reinado do malvado Scar. O reinado de Scar ficou inviabilizado por causa da “tragédia dos comuns”. 

O que é isso? Esse nome vem de um ensaio de Garrett Hardin publicado nos anos de 1960. Conta a história de uma pastagem de ovelhas compartilhada por pastores. Um pastor a administrava e dividia os custos entre os demais, como a conta da água de um condomínio que é rateada entre todos os moradores. A “tragédia dos comuns” é um conceito que considera que o uso irrestrito de um recurso coletivo e finito pode levar à sua degradação por conta da superexploração. Se eu aumento o meu tempo de banho todos os dias ou se, no caso da pastagem, eu adiciono ovelhas, o meu ganho é maior individualmente em comparação com a cota individual do custo distribuído. 

O problema é que todos pensam o mesmo e adotam racionalmente a mesma estratégia: com o fim de maximizar sua produção, os pastores adicionam animais na pastagem. Se de um lado o pastor aumenta seu lucro, de outro a pastagem é degradada mais rapidamente. Podemos aplicar o mesmo raciocínio para o uso da atmosfera (efeito estufa), dos rios (poluição), para a pesca e as populações de peixes, florestas, parques nacionais, parquímetros etc. 

No filme da Disney, o rei Mufasa explica para o seu filho Simba que tudo está em equilíbrio, a vida é um ciclo e que todos somos afetados pelo comportamento dos outros. Basicamente é do que trata a teoria dos jogos.

A teoria dos jogos oferece uma estrutura geral e útil para a análise de incentivos racionais em sistemas sociais. A estrutura nos permite ver as pessoas com as quais nos relacionamos como jogadores igualmente racionais e analisar nossas decisões em conjunto com as deles numa mesma situação que leva em conta como as preferências e as informações de que as pessoas dispõem variam.

Se a terra e o alimento comuns são explorados de forma egoística e independente por todos, algumas situações podem acontecer. Por falta de diálogo e/ou de informação, o alimento pode se esgotar no longo prazo. Informação é importante. Sem ela, e sem uma autoridade central para tentar dar um bom rumo ao uso do bem, corremos o risco de cair na tragédia dos pastores. 

O famoso jogo conhecido como “dilema do prisioneiro”, muito usado em teoria dos jogos, também ilustra essa situação. Nesse jogo, dois prisioneiros isolados em salas distintas e desconfiados um do outro perseguem seu próprio interesse na negociação da pena com o promotor e acabam, ao final, traindo um ao outro, pois não sabem o que o outro está dizendo na sala ao lado. Era a melhor resposta racional que cada um podia dar naquela situação. Contudo, a cooperação poderia ter trazido pena menor a ambos. Daí a ideia de “dilema”.

No caso do filme, com a informação de que todos podem ficar em pior situação se nada fizerem em relação ao uso do território, podem decidir conversar e chegar a um acordo. Por exemplo, limitar o número máximo de animais que podem ser abatidos por família, o período em que a terra pode ser usada para determinado fim etc. Sendo esse acordo a melhor resposta racional que todos podem dar uns aos outros, temos um equilíbrio. 

Se alguém tentar mudar de estratégia unilateralmente, tende a perder. Se os outros perceberem a quebra do esquema, todos podem retornar ao comportamento anterior e o resultado final será o esgotamento do alimento. Todos perdem.

É o que se chama de “equilíbrio de Nash”. O nome vem do matemático que o propôs, John Nash, retratado em outro filme bem conhecido, Uma Mente Brilhante. É o equilíbrio da vida de que falava o rei Mufasa. Em uma das cenas desse filme, Nash estuda em um bar, e seus colegas na mesa chamam a atenção para algumas moças que chegam, em especial uma loira que se destacava por sua beleza. Um de seus colegas relembra a célebre lição de Adam Smith, que, em competição, a ambição individual serve o bem comum. 

Nash replica e diz que a teoria de Adam Smith tinha de ser revista. Argumentou que se todos optassem pela loira, bloqueariam-se uns aos outros, e nenhum conseguiria tê-la. Se optassem pelas amigas em seguida, nenhuma se interessaria, pois ninguém gosta de ser segunda opção. Se ninguém optasse pela loira, não haveria o bloqueio mútuo dos competidores, e não haveria ofensa às outras moças, que estavam em número suficiente para fazer par com todos. Esta seria a única forma de obtenção de resultados satisfatórios a todos, garantindo-se o equilíbrio de interesses. 

Ao contrário de Adam Smith, para quem os melhores resultados surgem quando cada um no grupo perseguir seus próprios interesses, Nash defendeu que o melhor resultado surge quando todos os integrantes do grupo consideram em seus cálculos estratégicos os seus próprios interesses e os dos outros integrantes do grupo. Basicamente era a lição que Mufasa ensinava para o seu filho Simba para ser um bom governante.

Às vezes o grupo não consegue enxergar o problema, como os colegas de Nash no bar. O Zazu, ave que distribuía notícias e fofocas no filme da Disney, fazia bem esse papel de reduzir o custo da informação naquela sociedade de animais. Ele era como a imprensa livre, que faz esse papel importante em nossas sociedades de hoje.

Se os animais não chegam eles mesmos a um acordo, um terceiro com legitimidade pode fazer isso. O governo! No caso, o leão rei. É para isso que existe o direito. O ser humano, diante da incerteza da vida social, e para minimizar o problema da assimetria de informação, cria regras para a convivência, com o fim de simplificar e facilitar as trocas entre as pessoas e, assim, controlar a violência e aumentar o retorno econômico para o grupo. 

Um arcabouço institucional definido limita as possibilidades de escolha dos atores (racionalmente egoístas e maximizadores de seus próprios interesses), e assim altera o preço que eles pagarão ao optarem por uma ou outra ação. O direito deve criar uma estrutura de incentivos para a cooperação social.Ou seja, o objetivo básico do direito é reduzir os custos de transação e gerar paz social e desenvolvimento nacional.

Estabelecido o diálogo e feito o acordo (ou escrita a lei pelo governo), outro perigo é o free rider– ou seja, o oportunista, o caronista, aquele que vai se aproveitar e tentar se beneficiar sem obedecer as regras. No filme, a força intimidadora do leão desincentivava os free riders. Ora, é o animal mais forte e temido das savanas africanas! Esse leão é o Estado e seu sistema penal (polícia, tribunais e prisões).

Com o reinado do malvado Scar, a terra e a caça foram explorados sem regras e os recursos se esgotaram. Além disso, a sociedade civil de animais não conseguia competir com o Estado e seu exército de hienas. Tudo ficou cinzento e triste. Simba, o filho do rei morto, então retorna e recoloca tudo em ordem, como nos tempos de seu pai: acaba com o monopólio de fato do Estado e impõe regras para a exploração do bem comum, restaurando o equilíbrio da vida. O que era cinzendo e triste ficou colorido e alegre, e assim seguiu o ciclo da vida… Hakuna Matata!

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