Uma nova Guerra Fria?

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O vírus da Covid19 foi produzido na China. A China escondeu a epidemia do Covid19. O Belt Road Initiative é uma forma de dominação regional da China. A China está dominando a América Latina. Apesar da queda da ex-URSS, o comunismo ainda precisa ser combatido. 

Estes são alguns exemplos das narrativas hoje em dia que apontam a China como a causa de boa parte dos problemas e ameaças ao Ocidente. Como resultado, observamos um intenso processo de demonização da China em razão do seu posicionamento no cenário internacional, especialmente em razão do seu crescimento econômico e demandas internas. 

Os últimos 200 anos de dominação Ocidental (principalmente econômica) podem ser considerados como uma aberração histórica.

Entre os anos 1 d.C. e 1820 (ano da Revolução do Porto, a última liberal no continente) houve uma grande dominação do Oriente nas relações internacionais e econômicas, especialmente pela China, que no período de dominação Mongol (século XII) continuou a expansão iniciado pelo grande líder Mongol, Gengis Khan. Jack Wheatherford no livro Genghis Khan, and the making of the modern word aponta que as rotas de expansão feitas por Khan incluíram a Europa, mas, não houve interesse e disposição de dominação pela “falta de riquezas” na região (não podemos esquecer que alguns países europeus só conseguiram se desenvolver ao iniciar as navegações e pilhagem dos territórios além-mar ocupados). O autor aponta que esta falta de riqueza incluía alguns aspectos culturais, como, por exemplo, a escravização e comércio de pessoas dentre os próprios povos europeus e perseguições e guerras de natureza religiosa.

A dominação Ocidental nos últimos 200 anos começa a ser abalada a partir do final da 2ª Guerra Mundial. Se adotarmos a dimensão econômica para comparar o PIB dos Estados Unidos (exemplo representativo dos valores Ocidentais) e a China, temos o seguinte quadro: em 1950 o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos e China representavam 27.3% e 4.5% do PIB mundial respectivamente. Em 2018, considerando a paridade do poder de compra, este percentual comparativo passou para 15.2% e 18.69% (segundo o Banco Mundial).

Ademais, o grande crescimento interno da China forçou o país a buscar cada vez mais parcerias estratégicas para suprir a demanda. É o caso da aquisição de commodities do Brasil, que ajudou a manter o PIB brasileiro no pico da crise econômica nos últimos anos ao mesmo tempo que privilegia o modelo econômico brasileiro de exportação de produtos com baixo valor agregado. Pode-se culpar a China por esta escolha feita pelo Brasil e outros países da América Latina?

Como reação ao crescimento da China e a sua projeção no cenário internacional, iniciou-se uma grande reação dos Estados Unidos que foi seguida por muitos países que se alinharam para “combater o inimigo comum”. A estratégia de combate parece equivocada ao escolher a dimensão ideológica para fazer frente a este avanço, levantando a percepção de que estamos na iminência de um novo período de Guerra Fria e que os alinhamentos já devem começar como forma de preservação no sistema internacional. Este é um grande perigo trazido pelas recentes ondas nacionalistas que surgiram nas últimas eleições, cujos líderes para assumir e preservar o poder recorrem a expedientes como fake News, negacionismos, polarização da política, protecionismo, populismo, dentre outras táticas que geram o confronto e afastam as possibilidades de cooperação e multilateralismo no sistema internacional (veja o exemplo do esvaziamento da OMC e a saída dos Estados Unidos da OMS).

Por outro lado, o enfrentamento da China contra estas táticas não pode mais ser pautada pelo pragmatismo. A cultura chinesa é única e de modo geral desconhecida pelo Ocidente, assim, a projeção de soft power neste contexto ganha em relevância. Muitos podem se surpreender e ser desarmados em seus argumentos ideológicos ao saber, por exemplo, que o comunismo na China tem sua ontologia fincada na dimensão civilizacional e não em bases Marxista-Leninista. Ademais, podem se surpreender que a grande participação popular a despeito do sistema político centralizado e a superação da racionalidade positivista pelo conceito da eficácia (de matriz tradicional e histórica que sobrevive aos milênios da civilização chinesa). 

Desse modo, podemos apontar o equivoco que toma conta do Ocidente em relação ao crescimento e projeção da China no cenário internacional. Quando olhamos para os movimentos feitos pela China no sistema internacional, olhamos a partir do quadro teórico ocidental? O realismo e liberalismo, ou mesmo o construtivismo como teorias centrais nas relações internacionais não conseguem captar os movimentos da China no cenário internacional, classificando tais movimentos como imperialistas, sem considerar os elementos ideacionais tão importantes para a civilização chinesa (por óbvio a condição de potência imperial pode ser adquirida de forma não intencional, o que não foi o caso das potências europeias ou dos Estados Unidos no pós-Guerra). Precisamos urgentemente compreender melhor os movimentos da China no cenário internacional, sem preconceitos ou mesmo alinhamentos automáticos, voltando à tradição de nossa política externa que sempre se mostrou aberta para a formação de parcerias estratégicas que possam atender aos interesses de ambos, ao mesmo tempo que possa gerar um ambiente de maior solidariedade e menor competição tóxica. O homem não precisa ser o lobo do homem!

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Douglas Castro
Head Professor of Law of the Center for Advanced Studies in International Law and Politics (CAS-ILP). View my research on my SSRN Author page: https://ssrn.com/author=2358659