Os impactos econômicos da Lei 13.874/2019 nos artigos 421 e 421-A do Código Civil (Lei 10.406/2002)

Os impactos econômicos da Lei 13.8742019 nos artigos 421 e 421-A do Código Civil (Lei 10.4062002)
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A Lei 13.874/2019 instituiu no Brasil a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, medida que estabelece diretrizes voltadas à proteção da livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, dispondo sobre a forma de atuação do Estado em sua função de agente normativo e regulador.

A proposta da epigrafada legislação é assegurar a ordem econômica lastreada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o propósito de permear uma vida digna, segundo as diretrizes da justiça social, pelo fato do Estado ser um agente normativo e regulador da atividade econômica, com obrigação de exercer a função de fiscalização, incentivo e planejamento dos setores públicos e privados.

A questão que se coloca é: quais são os impactos econômicos da Lei 13.874/2019 nos artigos 421 e 421-A do Código Civil?

Diante dessa sinopse, o presente trabalho apresentará elementos com o escopo de fomentar a cognição do leitor sobre os impactos gerados pela legislação em comento e os eventuais efeitos práticos que são gerados.

Contexto Histórico

Para que seja possível discorrer sobre os impactos da Lei 13.874/2019 nos artigos 421 e 421-A do Código Civil, será necessário traçar algumas ponderações históricas para localização contextual. No entanto, essa exposição será pautada, objetivamente, nos fatores que ensejam a existência do diploma alterador, sem precisar remontar o Código de Hamurabi ou às Leis das Doze Tábuas.

A Revolução Francesa de 1789 é um marco para o liberalismo, em especial por permear a criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, medida considerada um alicerce para modificação dos preceitos estatais, gerando, por via reflexa, alterações políticas, sociais e econômicas (HOBSBAWN, 2007)[1].

Essa percepção gerou impactos para construção de uma nova sociedade regida sob os auspícios de que todos seriam iguais perante a lei, primordialmente para o seu cumprimento, não competindo ao Estado a intervenção na iniciativa privada por ser o responsável por viabilizar os incentivos à livre concorrência, sendo latente a percepção de ‘laissez-faire, laissez passer’, isto é, deixem fazer, deixem passar (HUNT, 1989)[2].

Para que fosse possível gerar a liberdade esperada, em especial a liberdade econômica, seria necessário a utilização de um sistema capaz de assegurar a proteção da propriedade privada, gerando a utilização do sistema jurídico. Todavia, percebeu-se que o sistema jurídico era, em verdade, um intermediário da economia, uma vez que o seu ordenamento possibilitava a execução das medidas pretendidas na seara econômica (COPETTI NETO, 2013)[3].

Imbuídos dessas concepções, em 2019, o Brasil iniciou uma transição política atribuindo que haveria, de fato, a liberdade econômica com um insumo ao crescimento do país, sendo concedido notável relevo com as propostas governamentais para reformas econômicas.

Ocorre que, para que haja uma alteração de cenário econômico neste país, é necessário que o Congresso Nacional esteja alinhado com a medida, possibilitando a produção legislativa necessária a esse fim, e haja tempo para os competentes estudos voltados à legística.

Todavia, em 30 de abril de 2019, foi promulgada a Medida Provisória 881, apresentando a Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica, discorrendo sobre a promoção de um ambiente econômico-negocial mais livre da intervenção estatal, menos burocrática e, em tese, eivada de racionalidade.

Cabe ponderar nesse tocante que a (in)constitucionalidade da medida provisória, que alterou diversos diplomas, dentre eles o Código de Civil por não apresentar a urgência prevista no texto constitucional, não será analisada, ainda mais por ter sido referendada pelo Congresso Nacional com edição da Lei 13.874/2019. Igualmente não haverá discussão sobre o afastamento de normas cogentes de ordem pública facultado no artigo 3º da medida provisória, pelos mesmos motivos esculpidos anteriormente.

Posteriormente, em 20 de setembro de 2019, após o procedimento ordinário realizado no Congresso Nacional, face a medida provisória que disciplinou a matéria, houve a sanção da Lei 13.874/2019, que alterou diversos dispositivos legais dentre eles os artigos 421 e 421-A do Código Civil, gerando impactos econômicos a serem analisados a seguir.

Impactos Econômicos

Inicialmente é importante mencionar os preceitos do dirigismo contratual, base limitadora da autonomia de montagem das partes e da obrigatoriedade do cumprimento do contrato, para análise dos impactos econômicos.

O dirigismo contratual explicita a ideia de limitação para gerar a segurança com relação a alguns aspectos, notadamente aos cenários sociais e de exigências do bem comum. Essa medida apresenta relevância devido a intervenção estatal que não é prevista em lei e com alta frequência, em especial pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, é importante citar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que afirma, em sentido estrito, a possibilidade de revisão de cláusulas contratuais, em razão da boa-fé objetiva, mitigando demasiadamente a obrigatoriedade do cumprimento.

Nesse sentido cita-se:

“A jurisprudência do STJ se posiciona firme no sentido que a revisão das cláusulas contratuais pelo Poder Judiciário é permitida, mormente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual, devendo ser mitigada a força exorbitante que se atribuía ao princípio do pacta sunt servanda. Precedentes. (AgRg no Ag 1383974/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2011, DJe 01/02/2012).

Noutro sentido, somado ao dirigismo contratual, há a necessidade da análise do Teorema da Impossibilidade Arrow e do Paradoxo de Concorcet para empreender acerca da postura adotada no Código Civil, assegurando aferir a correção ou não na alteração.

A teoria da impossibilidade apresenta cinco condições destacáveis. A primeira é a racionalidade ou a comparação com a transitividade. A segunda é a ordenação irrestrita. A terceira condição é ótimo de Pareto dita como a busca pela maximização até o limite possível. A quarta condição podemos atribuir como a independência das alternativas irrelevantes sem a gerência para mudanças individuais. E a última condição é a não imposição do critério de escolha, sendo o caso de trazer à luz o extrato de validade da soberania e da liberdade individual. Não é possível acumular mais de duas condições.

No outro turno, as lições do Paradoxo de Concorcet explicita a medida voltada a dimensão entre preferências coletivas em paralelo às preferências individuais.

Imbuídos das questões supramencionadas, verifica-se que o Código Civil atenta, de certa forma, ao teorema da impossibilidade e ao paradoxo, em especial pela indicação do jurista Miguel Reale, um dos responsáveis pela redação do atual código, que dispõe que a norma civil permeia três possibilidades. A primeira possibilidade dá respaldo às garantias e direitos individuais, já a segunda dá preferência aos valores coletivos e a terceira busca ser uma linha intermediária para complementar regras, suprir algumas ausências e gerar a análise equitativa.

Essa medida demonstra o acúmulo de mais de duas condições (a segunda e a última), dando azo à incorreção na análise dos institutos em virtude de gerar a irracionalidade. Assim, há justificativa para alteração legislativa.

“Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916, ou dá preferência aos valores coletivos, promovendo a “socialização dos contratos”; ou, então, assume uma posição intermédia, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a preferida pelo legislador do Código Civil de 2002. É a essa luz que deve ser interpretado o dispositivo que consagra a função social do contrato” (Miguel Reale).

O Brasil, ao aprovar e sancionar a Lei 13.874/2019, estabeleceu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, instituindo parâmetros destinados à proteção da livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, e consignando a forma de atuação do Estado dentro da função/dever de agente normativo e regulador.

O escopo da norma seria assegurar a ordem econômica baseada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo como pilar a garantia de uma vida digna, dentro da ótica da justiça social, pelo fato do Estado ser o agente normativo e regulador da atividade econômica, competindo-lhe a função de fiscalizar, incentivar e planejar medidas voltadas aos setores públicos e privados[4].

A construção dessa possibilidade decorre do texto constitucional, sendo de suma valia a transcrição para análise detida dos impactos econômicos gerados.

Os citados artigos da Constituição Federal de 1988 preconizam os preceitos da ordem econômica regida neste país e a forma de promoção pelo Estado. Nesse sentido, verifica-se que há um estímulo estatal para assegurar medidas econômicas que viabilizem o retorno social, em especial pela busca de vida digna e incentivo à livre iniciativa, apresentando um caráter ótimo.

Dentro desse espeque, como já mencionado no contexto histórico, a transição havida em 2019 fizera com que o Brasil adotasse medidas com o fito de assegurar com maior veemência a liberdade econômica, garantindo incentivos para alteração social do país.

Nesse ponto, com o instituto de validar com extrema necessidade, não foram atendidas todas as regras de legística, acarretando uma certa restrição de seu conteúdo.

Formação em Análise econômica do direito

O primeiro parâmetro é o contexto das leis existentes, que nesse caso é o Código Civil, que trata com alta proteção a relação contratual; o segundo ponto é a medida que se apresenta como soluções possíveis. A alteração legislativa seria para assegurar a segurança jurídica das relações e sinalizar para o público externo uma mudança na política econômica de forma a trazer investimentos ao país; um terceiro ponto seria a desvantagem inconveniente e nesse cenário a lei nada previu, ou seja, incorreu em uma omissão; outro ponto recai na implicação financeira, o que, dentro da lógica da lei, seria angariar investimentos em capitais e possibilitar a livre negociação; o quinto ponto recai sobre a regulação entre as relações intergovernamentais, medida também não prevista, gerando demasiado implicação na validade e no raciocínio da construção lógica; e o sexto ponto recai sobre a consulta entre os Ministérios envolvidos, medida totalmente desatendida com relação ao Código Civil.

Entretanto, o artigo 421 do Código Civil, antes da nova redação e inclusão do artigo 421-A, tinha um condão mais protecionista, visava garantir mais insumos a possibilidade de equilíbrio contratual, ainda que com a intervenção estatal, mitigando, em alguns momentos, a própria das vontades das partes. Essa medida tem extrato no Direito positivado, na forma como as relações são prescritas, e, consequentemente, diante da impossibilidade de reger todas as possibilidades, nos desajustes que porventura possam gerar ônus excessivo para um dos pactuantes.

Essa intervenção estatal era realizada pelo judiciário, que buscava garantir a execução dos contratos e aplicar os equilíbrios necessários. Contudo, a Lei 13.874/2019, no tocante aos artigos 421[5] e 421-A[6] do Código Civil, tratou de extirpar essa possibilidade, atribuindo mais peso a pacto e a manifestação de vontade das partes, tornando a relação civil mais pautada na obrigatoriedade do cumprimento do contrato do que ao fim social a que ele se destina.

A leitura do texto acima deverá ser associada a intenção da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que dispõe sobre as diretrizes designadas para proteção da livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, possibilitando constatar, ainda que de forma singela, a tentativa de correção de uma falha de mercado, isto é, o diploma legal, diante da situação econômica do país, aferindo que alocação de bens e serviços no mercado não estava sendo praticada de forma eficiente, gerando perda líquida do bem-estar social, buscou alterar esse cenário.

Sob essa ótica, é importante considerar que toda vez que é adotada uma política dessa magnitude, através de um programa ou lei, há uma falha de mercado a ser corrigida, no entanto, existe a latência de ser gerada uma falha de governo mais grave que a própria falha de mercado. A falha de governo gerou os impactos econômicos da Lei 13.874/2019 nos artigos 421 e 421-A do Código Civil que serão explorados.

O primeiro impacto econômico está na mitigação da função social do contrato. A idealização da Constituição Federal ocorreu dentro de uma sistemática de regras e conceitos, incluindo na seara do Direito Civil, ocasionando a sistematização das relações jurídicas patrimoniais e contratuais.

Nesse diapasão, se mostra oportuno entender o escopo do contrato e o resultado útil que ele gera, sendo essa uma função social com efeitos externos. Resta claro que não se pode considerar que todo e qualquer termo particular deverá ser discutido perante o Estado-juiz, gerando a perda da racionalidade das decisões e o encarecimento da máquina estatal.

Ainda nesse sentido, Bruno de Ávila Borgarelli indica que:

[…] Ocorre que a disseminação da ideia de função social, especialmente a partir da segunda codificação, criou uma série de entraves à construção de um conteúdo jurídico para o princípio, em geral aferrado a platitudes de impossível concreção. Do solidarismo triunfante na retórica atrelada ao novo Código, tanto na propriedade quanto no contrato, não derivou, necessariamente, um cenário de maior agregação social, ou econômica (até porque o Direito não é capaz de mudar a realidade dessa forma). E os problemas começaram. Tem-se um exemplo interessante: a relação muito aceita entre as provectas limitações ao direito de propriedade, ou aos abusos nas relações contratuais (igualmente antigas) e a função social da propriedade (art. 5º, XXIII CF/88; art. 1.228, §1º CC/02) ou do contrato. (BORGARELLI, 2019)

Percebe-se que, com o fito de evitar a judicialização excessiva e indevida oriunda de questões contratuais, a Lei 13.874/2019 tratou de limitar a função social, no entanto, poderá gerar crescente assimetria de condições e vilipêndio em relações sociais.

Como uma das formas de diluir a extensão da função social tem como reflexo a diluição da intervenção estatal, seria possível lidar com a medida dando lastro à aplicação a redação do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[7], por destacar que qualquer decisão deverá ser lastreada em “valores jurídicos abstratos” e “observar” as consequências práticas da decisão”.

Considerando tais fatores, é importante elucidar os pontos positivos intentados pela lei. O primeiro ponto é o respeito à autonomia de vontade, da força obrigatória do contrato, permitindo que as partes tenham ciência acerca da veiculação e o cumprimento daquele ajuste que está sendo realizado. Outro ponto é a maior segurança jurídica nas relações, dada a mínima intervenção estatal, notadamente, do Poder Judiciário, o qual teria diluído a sua participação ao tentar evidenciar uma alteração substancial. Essas medidas fazem com que o ambiente se torne favorável aos investimentos por mais segurança e interesse em atuar dentro do cenário do país. E, a partir daí, por fim, haveria um fomento à livre iniciativa, um insumo para que as pessoas possam empreender e realizar atividades com a segurança de que seus contratos pagos não seriam revistos a qualquer momento.

De outro lado, as alterações nos artigos 421 e 421-A do Código Civil apresentam outros impactos econômicos, cabendo prelecionar o segundo, qual seja a ausência de congruência entre os institutos previstos no próprio Código Civil, gerando insegurança nos negócios, afastando a celebração de novos pactos.

Bruno de Ávila Borgarelli a esse respeito preleciona que:

[…] apresenta uma série de defeitos relativamente ao objetivo de atenuar a permanente funcionalização social dos pactos e fortalecer a autonomia dos particulares contra o paternalismo estatal. O conteúdo das modificações é fragmentado: por um lado, não atinge a globalidade da codificação civil, limitando-se a algumas inserções de forte sabor retórico em determinados dispositivos, enquanto outros foram mantidos em sua integridade, a exemplo dos arts. 113, 187, 422, por igual integrantes do eixo solidarista (ou eticizante) do Código Civil de 2002. Por outro lado, desconsidera os inúmeros problemas vividos atualmente pela doutrina, às voltas com a constitucionalização do Direito Civil, que tem na ideia de função social uma das pontes entre a CF/88 e o Código Civil. Isso prejudica a pretendida lufada de liberdade sobre o sistema jusprivatístico. O resultado é problemático, pois as modificações deixam margem para dúvidas, e essas dúvidas podem, contrariamente ao pretendido pelo Governo, robustecer o ambiente de insegurança nos negócios. O que, convenha-se, sempre foi um grande risco para qualquer MP que se pretenda “da liberdade econômica”, considerando-se o tônus intervencionista da atual Constituição Federal brasileira.Nesse mesmo sentido, segundo se crê, a tortuosidade do novo texto cria um estímulo àquelas manifestações doutrinárias de verniz constitucionalizante, numa espécie de fuga estratégica. Sendo tão truncada a redação, tão aberta e principiológica, com remissão a termos estranhos ao uso comum dos aplicadores, é bem provável que essa vagueza facilite a “subida axiológica” da interpretação. Com os prejuízos de praxe. Se é fácil perverter uma boa lei no Brasil, imagine-se o risco a que está exposta uma lei ruim.Um bom texto de lei, um texto de lei claro e expresso, como se dizia, pode ao menos constranger os menos aferrados à observação estrita do princípio de autoridade, que supostamente deveria governar o regime de justiça constitucional na sociedade complexa, em lugar da onírica justiça substantiva. (BORGARELLI, 2019[8])

Como a Lei 13.874/2019 foi elaborada a partir da medida provisória, não houve estudos de legística e os impactos econômicos de sua redação, assim, ao tentar dar mais liberdade para que as partes pudesse negociar e ajustar seus contratos, gerou maior a mitigação da função social do contrato já indicada, um latente desequilíbrio de forças, considerando os contratos nos quais um dos polos não tem o poder negocial que o outro possui ou há uma assimetria de informações de a contrariar o princípio da boa-fé, a citada ausência de congruência do código civil.

Um exemplo simples que pode mostrar que os artigos 421 e 421-A do Código Civil não conversam com os outros artigos do Código é o artigo 187[9]. Ele dispõe que:

Cabe indicar que a autonomia da vontade ficou deslocada no atual cenário do Código Civil, gerando mais um motivo para impedir novos pactos, gerando prejuízo social e econômico, no anseio pretendido pelos artigos 421 e 421-A, visto que recebeu caráter ampliado de mínima intervenção, mas não dialoga com a possibilidade dos fatores exógenos gerarem eventual revisão.

Nesse sentido, Francisco Clementino de San Tiago Dantas dispõe:

O princípio da autonomia da vontade, expresso na liberdade contratual e na liberdade de contratar, não foi, porém, jamais entendido e afirmado como princípio absoluto, a salvo de contrastes e limitações. Assim como nunca se concebeu o direito de propriedade como senhoria absoluta e ilimitada, afirmando-se, pelo contrário, limitações legais de ordem pública e privada aos poderes do proprietário, assim nunca se afirmou o princípio de autonomia da vontade como faculdade de contratar tudo que aprouvesse às partes, sem limites e censuras de ordem jurídica e moral. (CLEMENTINO, 2016[10])

Ainda nesse esteio, a lei indica que a liberdade de contratar será exercida “em razão da função social”, gerando a conclusão de que todo contrato seja orientado por esta medida, todavia, um contrato firmado com uma multinacional estrangeira com uma empresa de representação em território nacional, com impacto econômico substancial para arrecadação de tributos, não teria a proteção da intervenção mínima em razão de sua finalidade não estar atrelada a função social.

Afere-se, nesse esteio, que a busca estatual para sanar eventual insegurança jurídico-negocial, que previa a possibilidade de revisão contratual, ocasiona um bloqueio no avanço da publicização do Direito Civil e de seus institutos (a considerar, reitere-se, que esse é o objetivo do Ministério, por sua Secretaria de Especial Desburocratização).

Conclusão

A Lei 13.874/2019, que instituiu no Brasil a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, buscou criar diretrizes voltadas à proteção da livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, dispondo sobre a forma de atuação do Estado em sua função de agente normativo e regulador.

Ocorre que, ao alterar as cláusulas civis dispostas nos artigos 421 e 421-A do Código Civil, a indigitada lei criou impactos econômicos previstos e não previstos, que podem gerar o aumento da intervenção do Estado-juiz e a insegurança negocial pela ausência diálogo entre as normas do Código, afastando a proposta que idealizou a medida provisória posteriormente consagrada em lei.

De fato, os impactos econômicos deveriam ter sido apurados no processo de legística, diante da proposta de reestruturação da mínima intervenção estatal, o que, possivelmente, teria um resultado mais positivo pela análise técnica dos efeitos que seriam gerados.

Nesse sentido, para que seja possível assegurar a ordem econômica lastreada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o propósito de permear uma vida digna, segundo as diretrizes da justiça social, será necessário a readequação do Código Civil, mediante o prévio estudo de seus impactos econômicos e sociais, considerando os elementos culturais, históricos e sociais experimentados pelo país.

Conclui-se, desse modo, que a intenção de Declaração de Direitos de Liberdade Econômica foi positiva e, se bem estruturada, poderá gerar proveito ao bem comum, todavia, na forma atual, em que pese seja conhecida a necessidade de mudança, não foi aplicada em sua melhor possibilidade.

Mestrado em Direito


[1] HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

[2] HUNT, E. K. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

[3] COPETTI NETO, A. As premissas econômicas do neoliberalismo e a (re)formulação do estado (de direito) contemporâneo a partir do movimento Law and Economics. In: CENCI, Daniel Rubens; BEDIN, Gilmar Antonio (orgs.). Direitos Humanos, Relações Internacionais e Meio Ambiente. Curitiba: Multideia, 2013. p. 119-136.

[4] Vide artigos 170 e 174 da Constituição Federal.

[5] Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

[6] Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).

[7] Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.                    Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

[8] BORGARELLI, Bruno de Ávila. Contrato, função social e reforma legislativa: notas sobre o art. 421 do Código Civil após a MP da liberdade econômica. 2019. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/304368/contrato–funcao-social-e-reforma-legislativa–notas-sobre-o-art–421-do-codigo-civil-apos-a-mp-da-liberdade-economica>. Acesso em 06 de junho de 2023, às 09h16min.

[9] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[10] DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. Dirigismo – Imprevisão. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 6, ano 3, p. 261-276, jan./mar. 2016.

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Rafael Gomes
Advogado e Coordenador Jurídico. Graduado em Direito pela FMU, Pós-graduado em Processo Civil pelo Damásio Educacional, MBA Executiva: Gestão e Business Law pela FGV e Mestre em Ciências Jurídicas com ênfase em Resolução de Conflitos pela Ambra University. Professor Tutor na FGV e Professor da Graduação da Ambra University. Membro da IBDFAM, da AASP e de Comissões da OAB/SP.