Aposentadoria especial para servidores públicos: privilégio ou reparação?

Aposentadoria especial para servidores públicos privilégio ou reparação
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Por Rafael Gomes

Imagine que você é um(a) jogador(a) de futebol disputando a final da Copa do Mundo pela seleção de seu país. Devido ao forte calor, há uma parada técnica aos 30 minutos do segundo tempo para hidratação. Antes de retomar a partida, o árbitro expõe que as regras do jogo mudaram, impondo que o placar voltou ao zero e será necessário fazer três gols para valer um. E aí, o que você faria?

Guardadas as devidas proporções, o Supremo Tribunal, ao iniciar o julgamento do Tema 1019[1], passou a decidir a (in)constitucionalidade da mudança, por parte dos Estados-Membros, da regra de aposentadoria voluntária especial com integralidade e paridade dos servidores públicos que exerceram/exercem atividade de risco antes das Emendas Constitucionais 41/2003 e 47/2005.

Entenda

A aposentadoria especial foi aposta no artigo 40 da Constituição Federal de 1988, ao disciplinar o Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), com a finalidade de assegurar aos servidores públicos que exerciam atividade de risco – por conta do latente risco à vida, à saúde, à integridade física e à segurança – a integralidade (totalidade do vencimento do cargo efetivo) e a paridade (equiparação ao servidor em situação funcional ativa).

Diante das transformações sociais, econômicas, políticas e jurídicas no Brasil, a Constituição Federal virou objeto de micro reformas, através do Poder Constituinte Derivado[2], para realinhamento ao momento experimentado. Com isso, foram editadas as Emendas Constitucionais 41/2003[3] e 47/2005[4], alterando o artigo 40 da Carta Magna, para estabelecer as novas regras de transição voltadas à aposentadoria especial dos servidores com início do múnus público até 19 de dezembro de 2003[5]. Aqui cabe citar que atualmente tais regras estão sob o manto da Emenda Constitucional 103/2019, aprovada após a declaração de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal.

É importante indicar que a regra para aposentadoria voluntária especial em análise é (i) o exercício da atividade pública por, no mínimo, trinta anos, (ii) sendo, ao menos, vinte anos estritamente policial, conforme indica a Lei Complementar 51/1985, e (iii) ter ingressado no serviço público até 19 de dezembro de 2003.

Este cenário fizera com que os servidores públicos que exerciam atividades de risco nas citadas condições jurídicas tivessem a manutenção de um direito consagrado nos limites dos editais de seus certames e que, posteriormente, foram ratificados com a investidura no serviço público. Ocorre que os Estados-Membros passaram a adotar regras próprias para aposentadoria de seus servidores com menosprezo ao mandamento constitucional, violando direitos e garantidas fundamentais da epigrafada classe de trabalhadores. No Estado de São Paulo, por exemplo, que aplicou a Lei Complementar Estadual 1.062/2008, houve a redução de vencimento por volta de trinta por cento, ainda que os servidores ao se aposentarem voluntariamente tenham cumprido todas as exigências constitucionais.

Deste modo, foram aforadas diversas demandas para suscitar as inconstitucionalidades praticadas pelos entes da Federação a ponto de a questão ser revestida de notável relevância econômica, social e jurídica para repercussão geral no Supremo Tribunal Federal.

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Privilégio ou reparação?

As regras do jogo devem ser claras e observadas, assim, se uma pessoa faz jus a determinado direito impõe-se o respeito, a validação e o atendimento, de tal sorte que eventuais alterações deverão ponderar os efeitos práticos e concretos que serão gerados, conforme bem pontuado pelo artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[6].

Assim, não é um PRIVILÉGIO assegurar aos servidores públicos, que exercem/exerciam atividades de risco até a edição da Emenda Constituição 41/2003, a aposentadoria especial, mas sim uma REPARAÇÃO das injustiças cometidas pelos Estados-Membros ao aplicarem regras diversas dos preceitos constitucionais e do ordenamento jurídico pátrio.

Conclui-se, portanto, que ao julgar do Tema 1019, o Supremo Tribunal Federal deverá assegurar o direito dos servidores públicos citados, que tenham cumprido os requisitos formais, à aposentadoria voluntária especial com integralidade e paridade.


[1] O julgamento do tema, oriundo do leading case RE 1.162.672, teve início no Plenário Virtual da Corte em 14 de junho de 2023, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5550712&numeroProcesso=1162672&classeProcesso=RE&numeroTema=1019.

[2] O Poder Constituinte Derivado tem o condão de modificar (e não mudar) a Constituição Federal, possuindo as formas: reformador para ampliação ou diminuição do texto constitucional por meio de emendas; revisor para reanálise da Constituição cinco anos após a sua promulgação; e decorrente para cada Estado-Membro criar a própria Constituição Estadual com respeito à supremacia da Constituição Federal.

[3] A discussão aqui reflete nos artigos 2º e 6º.

[4] A discussão aqui reflete no artigo 3º.

[5] Data da promulgação da Emenda Constitucional 41/2003.

[6] O texto legal expõe que:

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

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Rafael Gomes
Advogado e Coordenador Jurídico. Graduado em Direito pela FMU, Pós-graduado em Processo Civil pelo Damásio Educacional, MBA Executiva: Gestão e Business Law pela FGV e Mestre em Ciências Jurídicas com ênfase em Resolução de Conflitos pela Ambra University. Professor Tutor na FGV e Professor da Graduação da Ambra University. Membro da IBDFAM, da AASP e de Comissões da OAB/SP.