Trote no ambiente acadêmico: da humilhação ao crime

Escutar o texto
Voiced by Amazon Polly

A mídia noticiou recentemente uma lamentável situação envolvendo alunos da Universidade de Santo Amaro e ocorrida nos jogos universitários em abril/2023, mas que só teve repercussão neste momento. A investigação da situação está em andamento, mas já circula a informação de que os alunos envolvidos poderão responder pelo crime de importunação sexual, passível de prisão. A Universidade emitiu nota de repúdio e informou que alguns dos envolvidos já foram expulsos.

O fato é que esta situação traz uma reflexão muito importante sobre o ambiente educacional e as diversas formas de “brincadeiras” entre veteranos e calouros, além de por em evidência a gestão e o controle da instituição de ensino.

Recepção: o famoso trote

É cediço que a aprovação em uma universidade é um momento de grande realização e felicidade, além de ser uma transição marcante na vida pessoal do estudante. Em meio a euforia de ser um novo universitário, é comum que estes estudantes sejam submetidos a uma recepção enérgica que, por vezes, o expõe a situações humilhantes, constrangedoras ou até mesmo violentas.

O trote tem origem na Europa Medieval e o objetivo da atividade era estabelecer a hierarquia, o que se evidencia, atualmente, com a pressão e poder que os veteranos têm sobre os calouros e o fato destes últimos buscarem constantemente o reconhecimento e encaixe. Neste sentido, o estudo realizado (MAITO, et al.; 2022):

“Todas essas situações evidenciam a hierarquia presente entre estudantes veteranos e calouros. Desde a Idade Média, estudantes são submetidos a rituais que envolvem raspar a cabeça, ingerir bebidas estragadas ou excrementos, e são chamados de “bichos”: animais que deveriam ser adestrados31. São situações humilhantes, de subordinação e violência psicológica. O trote pode envolver inúmeras violências e, embora proibido por lei estadual8 e normas universitárias36, continua presente”.

Há vários casos registrados no Brasil em que este momento de felicidade findou de forma trágica, com internações em massa e até morte, dividindo opiniões. A situação tomou proporções tão grandes que foi objeto de tentativa de regulamentação através do PL 9/2009 (originado do PL 1023/1995), arquivado em 2014, do PL 104/2009, arquivado em 2014 e do PL 117/2015, arquivado em 2022. Esses são alguns dos vários projetos de lei instaurados que foram engavetados, o que demonstra que a sociedade demanda uma posição legislativa para conter esses atos abusivos.

Atualmente, está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 445/2023 que proíbe a recepção de alunos “com coação, agressão, humilhação ou qualquer outra forma de constrangimento que atente contra a integridade física, moral ou psicológica dos alunos” (KAJURU, 2023). Ainda, prevê a responsabilização da instituição de ensino caso ela seja negligente ou omissa perante a situação.

Não há lei federal acerca do tema, mas já se evidencia legislações estaduais proibindo a prática dos trotes estudantis. Conforme bem mencionado na justificação do projeto de lei pelo Senador Jorge Kajuru, nossa sociedade tem, cada vez mais, cobrado providências das autoridades acerca de comportamentos imbuídos de violência ou desrespeito, tornando-se inaceitável justificar o ato como sendo uma tradição.

E-book - Compliance: o que é, qual a sua importância e como atuar na área

Gestão e controle pela instituição de ensino

Não é necessário tecer grandes comentários sobre a importância da instituição de ensino ter sob controle todo e qualquer ato realizado nas suas dependências ou que a envolva fora do ambiente educacional.

Neste sentido, não é mais admissível que a instituição de ensino aceite, ainda que tacitamente, a recepção dos alunos de maneira violenta, racista, humilhante ou por qualquer forma que viole o direito fundamental e constitucional do ser humano. Vale lembrar que a Constituição Federal prevê em seu Artigo 5º diversos direitos e garantias fundamentais, destacando-se o inciso XLI:

“XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”;

Em estudo realizado por MAITO, et al., em 2022, a instituição de ensino superior é marcada por uma cultura organizacional de virilidade, mas que acaba por se tornar abusiva e desarrazoada com atos envolvendo veteranos e calouros:

“Estudo sobre situações ofensivas sofridas por docentes, em função das relações de gênero e poder existentes na instituição44, identificou uma cultura organizacional marcada pela virilidade. A universidade possui uma pretensa neutralidade racional científica adaptada à lógica meritocrática que valoriza a combatividade e a disseminação da virilidade como regra de conduta, anestesiando o medo e imputando sofrimento ao outro.

Essas situações evidenciam a violência institucional na universidade. A gravidade está no fato de que a universidade, como instituição, em vez de enfrentar a violência, acaba se tornando autora e, nesse contexto, apresenta muitas dificuldades para lidar com a VIP”.

É em razão disso que a instituição de ensino deve tomar providências de gestão e controle para assegurar que não haverá qualquer situação humilhante ou criminosa, que descredibilize sua organização ou que atrapalhe a busca pelo ingresso na instituição.

Um código de conduta, sem sombra de dúvidas, é o documento mais acertado para direcionar os alunos, docentes e servidores acerca da cultura organizacional, missão e valores, regras e demais diretrizes. Contudo, é inegável que tal documento seja acessado por todos os envolvidos, a fim de garantir a sua eficiência.

Ainda, sugere-se a confecção de cartilhas a serem distribuídas e palestras orientando de forma clara e resumida o que não é permitido quando da recepção de novos alunos, sugerindo alternativas para que o momento, ainda que opcional, seja marcante e positivo para todos.

Punição aos infratores

Superada esta fase e, havendo indícios ou provas concretas de que houve abuso na recepção de novos calouros, é indene que a instituição deve instaurar processos disciplinar contra os envolvidos, o qual deverá ser supervisionado pelo compliance.

O canal de denúncias, também, é um meio indispensável e deve ser amplamente divulgado, salientando, ainda, o direito ao anonimato, a segurança da informação e a proteção do denunciante.

É dever da instituição adotar medidas preventivas para que abusos, violências e excessos não sejam mais acometidos, dentro ou fora de suas dependências, aplicando as devidas advertências e sanções cabíveis, independentemente de eventuais ações judiciais. Havendo qualquer omissão ou negligência, incumbe ao Ministério da Educação e demais autoridades competentes a punição, seja ela administrativa ou judicial.

O “trote” é algo que precisa ser repelido, principalmente, porque todo ato de violência acaba gerando outro ato violento, no ano seguinte, num círculo vicioso e interminável (SENADO FEDERAL, 2009). Assim, antes mesmo que ocorram novos atos violentos é preciso advertir os alunos das consequências de suas práticas.

Retomando ao caso inicial que ensejou a reflexão em comento, é certo que todos os envolvidos na lamentável situação devem ser punidos de forma administrativa e judicial, garantindo, inobstante, o direito à ampla defesa e ao contraditório.

Mestrado em Compliance

Referências

MAITO, Deise Camargo. PINTO, Maria Paula Panúncio. VIEIRA, Elisabeth Meloni. Violência interpessoal no ambiente acadêmico: percepções de uma comunidade universitária. Scielo. 2022. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/icse/2022.v26/e220105/# Acesso em 24/9/2023.

SENADO FEDERAL. PL 445/2023. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9257274&ts=1692911950437&disposition=inline&_gl=1*13jr9xd*_ga*MTMzNjE0MDQxOC4xNjgyMzY0MTgy*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NTU2Njc2MC44LjEuMTY5NTU2Nzg5Ni4wLjAuMA.. Acesso em 24/9/2023.

SILVA, Aline Gama da. LOPES, Paloma de Lavor. MOURA, Renan Gomes de. BARBOSA, Marcus Vinicius. Mecanismos de compliance em instituição de ensino superior. Revista Valore, Volta Redonda, 4 (Edição Especial): 317-330, 2019. Disponível em: https://revistavalore.emnuvens.com.br/valore/article/download/373/274 Acesso em 25/9/2023.

SENADO FEDERAL.PL 104/2009. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4356914&ts=1630411172576&disposition=inline&_gl=1*e4nad1*_ga*MTMzNjE0MDQxOC4xNjgyMzY0MTgy*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NTU3Nzg5OS45LjEuMTY5NTU3ODE3MS4wLjAuMA. Acesso em 25/9/2023.

Previous articleAlteração de Nome
Next articlePalestra “Uma visão jurisprudencial sobre o Marco Civil da Internet”
Júlia Tiburcio
Mestranda em Direito com ênfase em Compliance na Ambra University.