Artigo do Código de Processo Civil ou Enunciado do ENFAM, qual vale mais? Na prática forense, a resposta pode não ser tão óbvia assim.

Artigo do Código de Processo Civil ou Enunciado do ENFAM, qual vale mais. Na prática forense, a resposta pode não ser tão óbvia assim.
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O presente artigo abordará um tema singelo, que não possui o destaque devido por ser relegado, entretanto, com notável relevo no dia a dia da prática forense e na imagem de celeridade do Poder Judiciário.

De um lado das cordas, o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que, em linhas gerais, é a seara do direito que possibilita a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado-juiz com fito de solucionar um conflito de interesse entre duas ou mais pessoas, conforme preleciona Bueno (2016, p. 39)[1], ou de gerar a pacificação sobre determinada controvérsia.

Do outro lado, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira – ENFAM, que tem por escopo regulamentar, autorizar e fiscalizar os cursos oficiais para ingresso, vitaliciamento e promoção na carreira da magistratura, incluindo a possibilidade de formular sugestões para aperfeiçoar o ordenamento jurídico.[2] Cumpre denotar que o ENFAM possui extrato de instituição na Emenda Constitucional 45/2004, sendo, porém, instituído em 2006 com a Resolução n° 3 do Superior Tribunal de Justiça.

Pois bem. O Código de Processual Civil atual apresenta uma lógica diversa do Código revogado, discorrendo sobre o dever de cooperação entre os sujeitos do processo (artigo 6º) e a busca pela solução amistosa do conflito (artigo 334). Desse modo, tratou de estabelecer um regramento que preconiza que a sessão de conciliação ou mediação somente não será realizada se ambas[3] as partes manifestarem a ausência de interesse em transacionar ou quando a autocomposição não for possível (incisos I e II do parágrafo 4º do artigo 334).

O ENFAM, por sua vez, observando o regramento para postura do magistrado como presidente do processo, com a análise da faculdade de adaptações à tramitação do feito (inciso VI artigo 139), elaborou o enunciado 35 com o fito de formular sugestões para aperfeiçoamento da atividade judicante, preconizando que, preservado o rito, será possível realizar adequações ao processo, desde que respeitadas as garantias fundamentais.

Ocorre que, desde a edição do enunciado à luz, iniciou-se uma sequência de decisões judiciais afastando a realização da audiência de conciliação ou mediação com o objetivo de melhor adequar o rito as especificidades do caso concreto, sem cumprir, contudo, a disposição expressa do Código de Processo Civil. Essas decisões normalmente possuem a seguinte redação: “Diante das especificidades da causa e de modo a adequar o rito processual às necessidades do conflito, deixo para momento oportuno eventual designação de audiência de conciliação (CPC, art. 139, VI, e Enunciado n. 35 da ENFAM).”

Desse cenário urge o questionamento: Norma do Código de Processo Civil ou Enunciado do ENFAM, qual vale mais?

Essa pergunta é facilmente respondida nos bancos acadêmicos, do primeiro ao décimo período do Curso de Direito, com certa previsibilidade para que a resposta seja o Código de Processo Civil. E, até que a Constituição Federal tergiverse de forma contrária, a razão estará ao lado deles!

A orientação prestada pelo ENFAM não é indevida, muito pelo contrário, se bem utilizada em casos muito específicos, assegurará a rápida solução do litígio e o resultado útil almejado na demanda para uma prestação de mérito efetiva (artigo 4º), recaindo o problema acerca de sua interpretação para adaptação do rito de forma a resgatar o revogado Código de Processo de 1973 (a audiência era após a manifestação sobre a contestação), zona de conforto de alguns operados que labutaram anos por ele, e na sua aplicação com regra. Entretanto, as sessões de conciliação e mediação são notabilizadas por assegurarem a autonomia de vontade das partes para o resultado satisfativo, gerando economia de atos e a celeridade processual, o que é comprovável com os índices de êxito dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania dos Tribunais de Justiça[4].

Nesse cenário, é importante destacar que a conciliação ou mediação após a distribuição da petição inicial apresentar maior plausibilidade de êxito em detrimento daquela realizada após a oferta de contestação e réplica, pois evita a animosidade ocasionada ao réu para refutar os fatos imputados e a busca incessante para atribuir elementos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do autor.

A contestação aguça a litigiosidade, já a conciliação e a mediação caminham em sentido diverso por garantir um resultado satisfativo e útil, motivo pelo qual a utilização em demasia do enunciado do ENFAM, sem a devida cautela, gera prejuízo ao próprio Poder Judiciário e às partes.

Ainda sob esse cenário, verifica-se que a conciliação exitosa realizada após a oferta de manifestação a contestação demonstra que o litígio poderia ter sido satisfeito em momento antecedente (o correto), fato que geraria economia de atos e celeridade processual somada a economia financeira ocasionada pela resolução do conflito de forma amistosa.

Desse modo, respondendo à pergunta, o Código de Processo Civil – por óbvio – vale mais por ser norma a processual que disciplina a matéria e por gerar notável vantagem ao Poder Judiciário e às partes com os resultados frutíferos do Tribunal Multiportas. Quanto ao enunciado do ENFAM, o prestígio será mantido em virtude de, em casos específicos e em caráter de exceção, ser viável a aplicação, como na situação de diferimento da análise da tutela provisória de urgência para depois da contestação como forma de garantir ao magistrado segurança na concessão ou não da medida postulada.

Leia também sobre os impactos econômicos da Lei 13.874/2019 nos artigos 421 e 421-A do Código Civil (Lei 10.406/2002).

Formação em Negociação e Conciliação


[1]     BUENO, Cassio Scarpinella (2016). Manual de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, p. 39.

[2]     Escopo atribuído com supedâneo na página do ENFAM https://www.enfam.jus.br/institucional/sobre-a-escola/#:~:text=A%20Escola%20Nacional%20de%20Forma%C3%A7%C3%A3o,promo%C3%A7%C3%A3o%20na%20carreira%20da%20magistratura, com texto acessado em 23 de setembro de 2022 às 15h32min.

[3]     A sessão de conciliação ou mediação ocorrerá mesmo que uma das partes esteja em desacordo, o que, na prática, se monstra desarrazoado e sem resultado útil.

[4]     A Comarca de Rio Claro, Estado de São Paulo, apresentou 100% de êxito em conciliações virtuais no período inicial da pandemia do COVID-19, conforme dispõe o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=61131, em texto acessado em 23 de setembro de 2022 às 16hs.

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Rafael Gomes
Advogado e Coordenador Jurídico. Graduado em Direito pela FMU, Pós-graduado em Processo Civil pelo Damásio Educacional, MBA Executiva: Gestão e Business Law pela FGV e Mestre em Ciências Jurídicas com ênfase em Resolução de Conflitos pela Ambra University. Professor Tutor na FGV e Professor da Graduação da Ambra University. Membro da IBDFAM, da AASP e de Comissões da OAB/SP.